350º Aniversário da morte
de São Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac
Na conferência de 6 de Dezembro de 1658, São Vicente de Paulo, ao falar aos missionários acerca da finalidade da Congregação da Missão, é bem claro ao dizer que a evangelização dos pobres passa pela assistência material e espiritual:
“Não foi essa a missão de nosso Senhor e de muitos grandes santos, que não apenas recomendaram o cuidado dos pobres, mas que também eles mesmos os consolaram, animaram e cuidaram deles? Não são os Pobres os membros sofredores de Cristo? Não são eles nossos irmãos? Se nós os abandonamos quem irá servi-los? De modo que se houver alguém entre nós que pense estar na Missão para evangelizar os Pobres e não para socorrê-los, para remediar suas necessidades espirituais e não as temporais, respondo que devemos assisti-los e fazê-los assistir de todas as maneiras, por nós e por outrem, se quisermos ouvir estas consoladoras palavras do soberano Juiz dos vivos e dos mortos: ‘Vinde, benditos de meu Pai; possuí o Reino que foi preparado para vós, porque tive fome e me destes de comer; estava nu e me vesitistes; doente, e me socorrestes’. Agir assim é evangelizar por palavras e obras, é fazer o mais perfeito, o que fez também Jesus Cristo e é o que devem fazer quantos o representam na terra”. (SV XII, 73-94) [CEME: SV, XI 393]
Aqui está o propósito da nossa existência. Existimos porque somos continuadores da obra do Filho de Deus (Cf. SV XI, 108). A nossa razão de existir: são os pobres, nossos amos e senhores (Cf. SV IX, 125.211.214). Todos nós fazemos parte de uma grande família: a cristã e especificamente a vicentina. Vemos logo, desde o início, um guia a nortear a nossa vocação: Jesus Cristo, a regra da Missão de Vicente de Paulo (Cf. SV XII, 130) e de seus filhos.
Um dos últimos momentos que ela propôs foi a celebração do Ano Paulino, , porque a família vicentina, no cumprimento da sua finalidade deve tomar como modelo as palavras deste grande apóstolo: fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo (1 Cor 9, 22). A imagem de Cristo que na sua humildade não se valeu da sua condição divina mas fez-se um como nós para elevar-nos a Deus
(Cf. Ef 2,6-9).
É importante não perder de vista que somos continuadores da missão de Jesus Cristo. A missão evangelizadora é própria do Filho de Deus (Cf. Lc 4, 18) e de todos os seus discípulos. (Cf. Mt 15,16). É preciso conhecer bem a Cristo para poder anunciá-lo porque não vou anunciar-me a mim mesmo, mas sim a sua pessoa e sua mensagem. Quem assim proceder poderá orgulhar-se ao repetir: tenho de anunciar a Boa Nova do Reino de Deus a outras cidades, pois para isso é que fui enviado (Lc 4,43). Ser fiel ao mandato do Filho de Deus é ser fiel ao espírito de São Vicente de Paulo. As novas situações de pobreza convidam o vicentino a agir efectivamente na sua pastoral. O passado que sirva de lição para o presente e estímulo para o futuro.
A evangelização dos pobres não é uma descoberta mas um acontecimento que deve ser interpretado à luz das Escrituras, da Tradição e da vida dos santos. São Vicente de Paulo, pouco tempo depois da sua ordenação sacerdotal que procurava? Riqueza e bem-estar para si e sua família. Mas o acontecimento de Folleville e Chatillon-le-dombes interpretados à luz do Evangelho modificaram a vida deste homem que pouco a pouco, com ajuda do Espírito Santo foi subindo aos altares de Deus.
A evangelização dos pobres não conhece limites nem barreiras, como a Caridade que é inventiva até ao infinito (Cf. SV XI, 142-148). A família vicentina está espalhada dentre os povos que não conhecem profundamente a Cristo. Sãp Vicente de Paulo diz aos seus: Feliz do missionário que não tem mais limites para suas missões e seus trabalhos por Jesus Cristo; todo o mundo foi-nos dado para exercitar nosso zelo (Abelly II, 91). E continua, esta tarefa deve ser bem transmitida aos futuros missionários do mesmo modo que Cristo fez ao formar seus 12 missionários, os apóstolos, por meio da Palavra, vida e acções (Abelly II, 222).
São Vicente não mandou os missionários só para pregar missões mas também com o fim específico de socorrer os pobres nas suas necessidades espirituais e materiais. A quando a oração fúnebre de S. Vicente de Paulo, o orador Mons. Henri de Maupas du Tour, na igreja de São Germán l’Auxerrois, a 23 de Novembro de 1660, disse que a assistência prestada por São Vicente consistia precisamente em dar gratuitamente o alimento espiritual e material aos pobres. A mão de Deus elegeu S. Vicente de Paulo para levar as tábuas da Lei ao seu povo; é ele quem com seu zelo admirável …santificou milhões de almas nas missões; quem procurou a ajuda espiritual para províncias inteiras arruinadas pelos infortúnios da guerra; quem salvou milhões de criaturas das portas da morte, quem libertou do último naufrágio as almas infelizes…
O pensamento central de São Vicente de Paulo fundamenta toda a obra sobre o exemplo de Jesus Cristo:
Conformar-se sempre a Jesus Cristo, em pensamentos e intenções:
“O propósito da Compainha é imitar o Nosso Senhor, na medida em que possam fazê-lo pobres e simples mortais. O que significa isto? Que sepropuseram a conformar sua vida com Ele em seu comportamento, em suas ações, em suas tarefas e em seu fim. Como pode uma pessoa representar outra, se não tem o mesmoperfil, as mesmas linhas, proporções, modos e forma de olhar? É impossível. Portanto, se nos propusemos a sermos semelhantes a este modelo divino e sentimos em nossos corações este desejo e esta santa inclinação, é necessário conformar nossos pensamentos, nossas ações e intenções com as suas.... de modo que tudo o que façamos e não façamos se adapte a este princípio” . SV XII, 75 [CEME: SV XI, 383]
Conformar-se a Jesus Cristo evangelizador dos pobres, fazendo efectivo o evangelho:
… Se perguntarmos a Nosso Senhor que veio fazer à terra, que nos responde?- A evangelizar os pobres, é esse o mandato do Pai… SV XII, 77 [ CEME: XI, 391]; …é necessário dizer que evangelizar os pobres não significa só ensinar os mistérios necessários para a salvação, mas também fazer as coisas preditas pelos profetas, ou seja, fazer efetivo o Evangelho…SV XII,79 [CEME: XI, 391].
Fazer efetivo o Evangelho, significa evitar toda a ideologia, toda a repetição automática da Palavra de Deus, toda a desencarnação do mistério do Filho. Evangelizar significa traduzir na prática o Evangelho, ou seja, crer em Jesus Cristo, viver em Jesus Cristo, seguir Jesus Cristo. O Santo quer dizer que, não bastam as palavras, exigem-se também as obras. Para crer e viver aquilo que se prega, há que actuar, servir, sair ao encontro do próximo, das suas necessidades.
Evangelizar significa assistir os pobres de todos os modos, espiritual e materialmente.
“Se houver alguém entre nós que pense estar na Missão para evangelizar os Pobres e não para socorrê-los, para remediar suas necessidades espirituais e não as temporais, respondo que devemos assisiti-los e fazê-los assistir de todas as maneiras, por nós e por outrem, se quisermos ouvir estas consoladoras palavras do soberano juiz dos vivos e dos mortos: ‘Vinde, benditos de meu Pai; possui o Reino que foi preparado para vós, porque tive fome e me destes de comer; estava nu e me vestistes; doente, e me socorrestes’”Mt 25,34-36. (SV XII, 73-94) [CEME: SV, XI 393].
A ideia central é que os missionários imitem e continuem a missão de Jesus Cristo que evangeliza, anuncia o evangelho, proclama a boa nova da salvação. Fazer isto é evangelizar por palavra e por obras; é o mais perfeito; e é o que nosso Senhor praticou e têm que praticar os que o representam na terra. (SV XII, 73-94) [CEME: SV, XI 393].
Assim podemos afirmar que o itinerário missionário de São Vicente de Paulo, na evangelização dos pobres, é:
Ver. Ser bom observador, vendo a sociedade e como esta trata os pobres, as condições dos mesmos. Cristo nos pobres.
Julgar. Pensar como se poderá mudar as condições, questionando os porquês e os projetos possíveis. Cristo pelos pobres.
Compadecer-se. Ter compaixão pelo irmão. Colocar-se na pele deles. Cristo com os pobres.
Agir. Por mãos ao trabalho, ser samaritano e curar as feridas. Cristo ama os pobres.
A evangelização dos pobres, hoje, no mundo da globalização com os seus efeitos, é um grande desafio. O fenômeno das ‘massas sobrantes’, daqueles que, segundo alguns, estão a mais neste mundo, a exclusão e descriminação e muitos outros desafios da pós-modernidade, associados à atual crise financeira e economica com os seus efeitos nocivos, são os novos apelos na evangelização dos pobres.
A minha experiência de Deus, necessária para poder evangelizar, passa pela experiência de pastoral em África - Moçambique, que é apenas de 7 anos, e por outras, como capelão militar na Europa - Portugal…dá para viver e sentir que, o fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo (1 Cor 9, 22) de São Paulo é uma necessidade para se conseguir evangelizar os pobres. Eles pedem-nos: que sejamos homens de Deus, coerência de vida, presença de Deus, fidelidade a Cristo que é a nossa regra da missão.
A evangelização dos pobres para ser eficaz deve ser feita pelos próprios pobres. Da nossa parte devemos organizá-los, formá-los e ajudá-los a constituírem-se em pequenas comunidades ‘de base’ ou núcleos, onde todos se possam conhecer, ajudar e amar; devemos impeli-los para Cristo através da força do amor de Deus que nos obriga a servi-los e a apoiá-los com a Palavra de Deus mas também com micro-créditos, com pequenos projectos geradores de recursos, com oportunidades de saírem por si da pobreza em que se encontram.
A igreja ministerial das pequenas comunidades, que se vive em Moçambique, é fruto da perseguição que esta viveu, onde o abandono e morte de muitos missionários a levou a procurar novos caminhos de evangelização, apostando mais nos leigos. A Guerra de Independência de Moçambique (1964-1975) gerou a independência da antiga colónia portuguesa deMoçambique em 1975. Seguiu-se que a igreja clerical do tempo da colónia ‘desaparece’. Com a saída da grande parte dos missionários, os poucos que ficaram com o clero diocesano moçambicano são perseguidos e limitados pelo regime marxista-leninista. Muitas das unidades privadas de saúde e educação pertenciam a igrejas cristãs, principalmente àIgreja Católica, e as nacionalizações, associadas à propaganda oficial socialista "anti-religiosa", criaram um clima de animosidade entre os cristãos e o estado. Segue-se a conhecida "guerra dos 16 anos" ou "guerra civil moçambicana" que foi um conflito armado entre 1976 e 1992. Neste contexto a igreja em 1977 e depois em 1991 reúne-se em Assembleia Nacional de Pastoral e decidem criar, por necessidade, a igreja ministerial, de comunidades e ministérios e começa a consolidar-se a Igreja local.
Nesta igreja ministerial se reúnem em núcleos, ou pequenas comunidades, os vizinhos que se querem bem, onde todos têm um ministério e uma função a realizar ao serviço dos outros. Todos se conhecem, se visitam, se ajudam, se sentem pertença e celebram a sua fé com vida, ritmo e alegria contagiante. Todos são família. Aqui a paróquia é a comunidade das comunidades, é o conjunto dos núcleos que à vez vão animando as celebrações, vivendo os sacramentos. O futuro passa pelo voltar ao espírito da primeira comunidade de Jerusalém, onde eram perseverantes ao ensinamento dos Apóstolos, à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações… Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração (Act2, 42.46) e não havia necessitados entre eles. Isto só é possível quando todos pertencerem a uma pequena comunidade ou núcleo.
A evangelização deve entrar no coração do pobre fazendo-o protagonista da sua salvação material e espiritual, fazendo-o se sentir amado por Deus e fazendo-o aceitar que Deus é bom, misericordioso e justo.
A Palavra de Deus deve penetrar até o mais profundo de sua vida, assim que quando as aflições da vida chegarem recorrerá aos seus deuses, aos feiticeiros, aos espíritos… que nunca foram substituídos no fundo do seu coração.
A evangelização do pobre passa por uma encarnação e adaptação à realidade e ambiente do missionário. Pois só assim poderá abranger a muitos e converter alguns.
Nos fins do ano 1999, quando fui capelão militar da escola de tropas pára-quedistas em Portugal, os boinas verdes, vivi uma situação que me fez passar por esta encarnação para conseguir entrar no coração daqueles filhos de Deus.
Quando fui colocado deram-me uma boina castanha, a mais vulgar e a que não custa suor para ganhar, e comecei a organizar a pastoral religiosa. Com o apoio de alguns oficiais marquei celebrações e reuniões de preparação para alguns sacramentos…, mas os resultados foram catastróficos. Interrogava-me porquê e nada… então comecei a ver que todos tinham boina verde e, que os poucos de boina castanha não eram muito considerados. O comandante insistia comigo que deveria tirar o curso de pára-quedismo militar com eles para os poder ‘ganhar’, para ser um deles, para os compreender, para ser aceito e pertencer àquela grande família, para ganhar a boina verde. Pensei mil vezes no convite, tentando digerir a frustração pastoral, mas olhando à minha razão de estar naquela unidade militar, à minha missão de missionário vicentino finalmente decidi por iniciar os treinos para efectuar as provas. Em 2 meses consegui entrar no curso e concluí-lo com êxito, recebendo a tão sofrida boina verde. Deu-me vontade de desistir, muitas vezes, mas o zelo apostólico e a sua fecundidade eram mais fortes do que eu. Com a boina verde na cabeça, vi o resultado do serviço pastoral mudar completamente. Era um deles! Compreendi a mensagem de São Paulo: Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo. (1 Cor 9, 22).
Como nos diz São Vicente de Paulo, uma coisa deve animar-nos no nosso apostolado: a evangelização é tarefa do filho de Deus, Ele a começou e a vai terminar, Ele só precisa de nós como simples instrumentos seus. Por isso estejamos confiantes que Ele é nosso sustento por isso nos chamou, nos escolheu e nos enviou (Abelly III, 10) e a sua providência acompanhar-nos-á. (Abelly III, 12).Dai-me um homem de oração e será capaz de tudo; poderá dizer com o santo apóstolo: “Posso todas as coisas na Aquele que me sustém e me conforta” Filp 4,13. (XI, 83-84) [CEME: SV XI, 778] L. ABELLY, lib. III, cap. 7, p. 56.
Perguntas para a reflexão pessoal e em grupos
Que significa evangelizar os pobres para a Família Vicentina, ao celebrar os 350 anos da morte de São Vicente de Paulo e da Santa Luísa de Marillac?
Que experiências marcantes de evangelização dos pobres tens em sua realidade e em que elas te ajudam na compreensão e desenvolvimento de um serviço missionário atualizado, dinâmico e fiel ao carisma vicentino?
Pe José Luís Azevedo Fernandes cm, provincia de Moçambique
SV XII, 1-14 [CEME: SV XI 326-327] ver nota 3 para outros relatos.
SV XIII, 45-54 [CEME: SV X, 52-59] e outros textos.