O que fazer com meu santinho quebrado?
Uma vez benzidos e destinados ao culto divino ou à veneração, os objetos sagrados devem ser tratados com reverência, não podendo ser usados de maneira imprópria ou profana. Como proceder, então, quando eles quebram ou se desgastam pelo uso?
Pe. William SaundersTradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
“O que devo fazer com o meu velho ramo bento? E com minhas imagens e rosários bentos? Já que foram benzidos, tenho certeza de que não devo simplesmente jogá-los no lixo. Existe alguma orientação sobre isso?”
Como católicos, estamos acostumados a possuir objetos “benzidos”. Nesse caso, um bispo ou um padre confere uma bênção que significa a santificação e consagração permanentes de um objeto a alguma finalidade sagrada. Essa bênção recebe o nome técnico de “bênção constitutiva”. Por exemplo, quando um bispo dedica ou, em terminologia clássica, consagra um altar, o altar deve ser usado apenas para fins sagrados: particularmente, para o oferecimento da Missa. Ou, quando um cálice é benzido, ele se torna um vaso sagrado, destinado unicamente ao uso sagrado. Uma vez que o objeto religioso foi benzido e destinado ao culto divino ou à veneração, ele deve ser tratado com reverência e não pode ser usados de maneira imprópria ou profana (cf. Código de Direito Canônico, Cân. 1171).
No entanto, objetos religiosos abençoados quebram e se desgastam pelo uso. A regra básica para desfazer-se deles é queimá-los ou enterrá-los [1]. Durante o séc. XIX, tanto a Sagrada Congregação dos Ritos quanto o Santo Ofício (hoje chamados, respectivamente, de Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé) emitiram várias determinações a esse respeito. Eis aqui alguns exemplos: um cálice que se torna “inservível” não deve ser vendido, mas usado para algum outro fim sagrado ou derretido; vestes, paramentos e alfaias devem ser destruídos; água benta suja ou em excesso deve ser despejada na terra. Os ramos devem ser queimados e suas cinzas, distribuídas na Quarta-feira de Cinzas ou lançadas na terra; um rosário quebrado ou uma estátua religiosa devem, normalmente, ser queimadas etc. Em resumo, a ideia de fundo é que o que foi dedicado a Deus deveria voltar para Deus. Nunca deveríamos “jogar fora” o que foi consagrado a Deus.
A ideia de fundo é que o que foi dedicado a Deus deveria voltar para Deus. Nunca deveríamos “jogar fora” o que foi consagrado a Deus.
Curiosamente, esse mesmo critério se aplica ao descarte da Santa Eucaristia. Em cada sacristia há um sumidouro (sacrarium), que é uma pia conectada não com o sistema de esgoto, mas diretamente com a terra. Se, por algum motivo, o sacerdote tiver de descartar uma Hóstia sagrada, ele deverá dissolvê-la completamente na água e deixá-la escoar pelo encanamento do sumidouro. Aliás, estava eu certa vez a distribuir a Santa Comunhão num asilo, e uma das velhinhas queria recebê-la como de costume, mas, por alguma razão, não conseguia engoli-la. Ela então expeliu a Hóstia sagrada no purificatório. Quando voltei à sacristia, entornei pelo sumidouro a Hóstia sagrada, já dissolvida na água [2].
Por vivermos numa sociedade em que tudo se tornou tão descartável, não podemos esquecer os objetos religiosos que foram benzidos e dedicados a Deus e a um uso sagrado. Meu coração se parte toda vez que entro numa loja de antiguidades e vejo um cálice, um relicário (às vezes, ainda com relíquias), vestes e outros objetos sagrados que, alguma vez, foram utilizados na Santa Missa. Eu me pergunto: “O que estaria pensando o sujeito para desfazer-se disso de tal maneira?” Ele deveria ter buscado para esses objetos religiosos um novo lar em alguma igreja, ou tê-los descartado da forma correta.
Por favor, guarde sempre com cuidado os seus objetos religiosos em casa, venere-os com piedade e, se necessário, desfaça-se deles corretamente.
Supondo-se, é claro, que a quebra ou o desgaste tenham tornado o objeto absolutamente impróprio para uso, sem que seja possível sequer restaurá-lo (no caso de uma estátua que se desfez em inúmeros pedaços, por exemplo).
Recorde-se, a propósito, o que prescreve a Instrução Geral do Missal Romano, n. 280: “Se cair no chão alguma hóstia ou partícula, recolhe-se reverentemente. Se acaso se derramar o Sangue do Senhor, lava-se com água o sítio em que tenha caído e deita-se depois essa água no sumidouro colocado na sacristia” (ambas as notas são da Equipe CNP).
O cân. 1171 do Código de Direito Canónico em vigor dá-nos uma indicação sobre como proceder no caso de coisas destinadas ao Culto divino pela dedicação ou pela bênção: «sejam tratadas com reverência e não se votem ao uso profano ou a outro uso não próprio, ainda que estejam sob o domínio de particulares». Diretamente, tratar-se-á de tudo o que está incluído na Dedicação da Igreja e do Altar ou na III parte de Celebração das Bênçãos (Ritual Romano): mobiliário litúrgico, alfaias, sinos, órgão de tubos, pias batismais, confessionários, paramentos, imagens e objetos sagrados… destinados ao culto público da Igreja. Mas, por extensão, também se poderá aplicar a recomendação canónica a objetos de piedade benzidos para culto privado, mais pessoal. O que a Igreja pretende é evitar a sua profanação, uso sacrílego ou contrastante com a piedade cristã, o que facilmente pode ocorrer se tais objetos forem deixados ao abandono ou depositados em lixeiras comuns.
Para aliviar espíritos mais escrupulosos, que quase fazem equivaler o efeito da bênção à consagração das espécies na celebração eucarística, e para serenar os que oscilam entre a piedade e a credulidade supersticiosa, misturando bênçãos com maldições, importa superar uma conceção material da bênção, como inerente à coisa benzida, algo de físico ou metafísico. Nesse sentido releiam-se os Preliminares do Ritual Celebração das Bênçãos: «todas as coisas que Deus criou e sustenta no mundo com a sua graça providente dão testemunho da bênção de Deus e nos convidam a bendizê-l’O» (CB 7). As bênçãos, referindo-se principalmente a Deus e derivadamente aos homens, «também se dirigem às coisas criadas, por cuja abundância e variedade Deus abençoa o homem» (CB 7). «Por vezes a Igreja abençoa também as coisas relacionadas com a atividade humana ou com a vida litúrgica e também com a piedade e o culto, mas tendo sempre em conta os homens que utilizam essas coisas e atuam nesses lugares» (CB 12). Ou seja, em última análise, o recetáculo da bênção das coisas é sempre o ser humano. É por isso que «normalmente, a celebração da bênção de coisas ou de lugares não deve fazer-se sem a participação de pelo menos algum fiel», ao menos «aquele que quer bendizer a Deus ou pedir a bênção divina» (CB 17).
Mais do que ser transformada na sua entidade, a coisa benzida adquire uma nova referência que reside mais no sujeito que dela faz uso, do que na coisa em si, materialmente falando. Acontece um pouco como na imagem/ícone sagrada em que a veneração tem por termo não o suporte material da mesma (tela, madeira, etc.) – cair-se-ia na adoração idólatra vetada pelo segundo Mandamento do Decálogo – mas a pessoa ou hipóstase nela representada de modo que a sacralidade do ícone reside nessa relação simbólica («semelhança») entre o objeto e o protótipo nele representado em traços e cores, mediando presença, encontro e comunhão de pessoas.
Portanto, mais do que a coisa «benta», é o crente com as suas faculdades, pessoa capaz de «entender», usar e viver símbolos, que é santificado pela bênção. Não é como na consagração eucarística em que – para usar o modo de falar do Magistério autêntico – a própria «substância» do pão e do vinho consagrados, na sua objetividade, passam a ser presença real do Ressuscitado na sua integridade humano-divina: corpo, sangue, alma e divindade. Aliás, mesmo no caso das espécies consagradas do Santíssimo Sacramento, é doutrina comum da Igreja que a presença substancial de Cristo cessa quando as espécies se corrompem ou degradam (por ex.: quando a espécie do vinho passa a vinagre ou quando a espécie de pão se desfaz num recipiente com água). Analogamente, também as coisas benzidas perderiam a sua capacidade de mediar a bênção quando estão de tal modo deterioradas pelo uso ou danificadas e destruídas por qualquer acidente que já perderam a sua integridade e dificilmente podem ser reconhecidas como aquele objeto de devoção e piedade sobre o qual se invocou a bênção. Diríamos que já não são «coisas sagradas».
Isso resulta de forma luminosa da leitura atenta das orações previstas na celebração das bênçãos de objetos de devoção. A graça invocada nas preces, mediante sinais e mediações sensíveis (em analogia com os Sacramentos), tem sempre as pessoas como destinatários, promovendo o seu crescimento na fé e devoção, capacitando-as para a contemplação do amor de Deus, transformando-as à imagem de Cristo, ajudando-as na vida presente rumo à vida eterna. Os objetos benzidos tornam-se sinais em que o significante material é totalmente relativo à realidade espiritual de que são memória e para o qual remetem no uso crente que deles faz a pessoa que assim é abençoada (CB 1173, 1175, 1181, etc.). Vejamos a título de exemplo, uma das bênção previstas para a coroa do rosário (terço): «Deus omnipotente e misericordioso, …dignai-Vos abençoar todos os que fizerem uso deste rosário em honra da Mãe do vosso Filho, rezando com os lábios e o coração, para que aumente dia a dia o fervor da sua piedade e, na hora da morte, a Virgem Santa Maria os leve à vossa presença» (CB 1199).
Postos estes considerandos, passamos a responder de forma mais direta à consulta: perante a degradação material ou excesso de objetos e imagens de piedade, benzidos ou não, como proceder?
Em primeiro lugar, deve avaliar-se se o(s) objeto(s) em causa, tendo em consideração o seu valor (devocional, material, artístico e estimativo) e o seu estado de conservação pode(m) e deve(m) ser restaurado(s) (havendo recursos para essa intervenção), ou conservado(s) de forma digna e reverente. Não sendo o caso, podemos seguir as instruções dadas em 1874 pela Sagrada Congregação para os Ritos e o Santo Ofício mesmo que a sua força vinculante já tenha caducado. Segundo tais orientações, os têxteis deviam ser queimados e as suas cinzas sepultadas; os ramos benzidos deviam ser queimados, reutilizando-se as cinzas resultantes na Quarta-feira de Cinzas do ano seguinte; imagens ou terços deviam ser enterrados… Este regresso à terra é a conclusão de um ciclo. Também os nossos corpos, que são templo do Espírito Santo, santificados pelos sacramentos, deverão um dia voltar à terra: «Lembra-te que és pó e ao pó voltarás!»
Aconselhamos cuidado com o uso de fogo, sobretudo nos apartamentos das nossas cidades que habitualmente não dispõem de lareira. Não repugna que as imagens impressas, em vez de queimadas, sejam recortadas de tal forma que os pedacinhos resultantes possam ser depositados no contentor destinado à recolha de papel ou de outro material de suporte. Os terços/rosários partidos ou incompletos podem, eventualmente, levar-se a alguma oficina de objetos religiosos onde se reutilizem as suas contas na feitura de novos terços…
Não deve, pois, haver qualquer temor em destruir objetos benzidos ou representações piedosas, fazendo-o, obviamente, com intenção reta, de forma recatada e sem qualquer intuito profanador mas antes com o objetivo oposto de prevenir a profanação por ação de terceiros, de forma inadvertida ou intencional e sacrílega.
Pe. Anton Lässer
Assistente Eclesiástico Internacional
Fundação Pontifícia ACN